quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Reintegração de posse e ação policial.

‎Os moradores da Vila Pinheirinho, um lugar ermo e miserável numa próspera cidade do interior, acordaram naquele domingo muito chuvoso mais ressabiados que o costume. O lugar, um ajuntamento humano, servia de moradia e abrigo a seis mil pessoas extremamente pobres que, faz muitos anos, foi invadido – pertencia à massa falida de um empresário, talvez o arquétipo nacional do trambique – estava lá jogado. Foram entrando alguns miseráveis, protegendo-se ali das intempéries. Pouco a pouco, novos miseráveis se instalaram, juntamente com traficantes, ladrões, malandros, que se aproveitaram da clandestinidade para que pudessem viver as suas próprias clandestinidades, sem maiores amolações; o clandestino não existe, não reclama verba pública, não reclama atenção pública, ainda que a cidade viva sempre com suas burras cheias, lotadas do rico dinheirinho do contribuinte e da gigantesca indústria da aviação, orgulho da raça. Os invasores foram se estabelecendo: trouxeram camas, compraram armários baratos, um fogão de duas bocas ou de quatro, as crianças foram ganhando confiança e brincando nos poucos espaços comuns, a fé cega trouxe uma igreja ou duas, a ausência da fé e a necessidade premente de uma álcool na garganta trouxe bares às dezenas. O que fora uma invasão ganhava o jeito de uma comunidade, de um bairro miserento como tantos outros, centenas de milhares de outros, num país marcado pela diferença econômica vergonhosa.
Mas, naquele domingo, as pessoas estranharam o alarido; já haviam se acostumado com a polícia caçando os malfeitores, um tiro ou outro, ou muitos, alguém correndo, alguém correndo em fuga. Não. Os policiais eram muitos, muitos, nunca vistos tantos assim, muito mais armados e fortes, mais hostis que o normal a que se adaptaram. Traziam muita gente. Algo horrível estava por ocorrer.
Em minutos, o bairro miserento e esquecido, o lugar dos bandidos e dos excluídos, transformou-se num caos, com desespero, fogo, tiros de borracha, bombas, sarcasticamente chamadas de bombas de efeito moral, pedradas, gritos, mulheres correndo, homens enlouquecidos, casas invadidas e gente de la retirada por policiais armados ate os dentes. Uma guerra paralela de ordens e contraordens, repórteres, os bairros vizinhos sitiados, políticos presos, juízes caminhando de um lado a outro, oficiais de justiça trombando com oficiais de justiça, barricadas feitas de velhas camas e beliches, resistência oposta com rojões, provavelmente sobra oportuna de título de algum campeonato. Uma velha perplexa, um velho contendo lágrimas, talvez lhe fosse impensável que nos últimos dias de sua vida, fosse sacado feito bicho do lugar miserável que o protegia da chuva. Informações desencontradas, alguém viu uma pessoa ferida, mas não se sabe, alguém viu uma pessoa morta, ou mais de uma, mas não se sabe, de nada mais se sabe. A chuva que caía misturava barro e pólvora, gente e lama, cães que procuravam seus donos, ladrando, ganindo, cada qual a proteger seu próprio rabo. A chuva e as pessoas expulsas, a roupa do corpo (qual é a roupa do corpo?), uma sacola de documentos pessoais, uma ficha qualquer de cadastramento qualquer, um ônibus, uma perua, chacoalhando rodas, fechado e tenso levavam os moradores para um abrigo, um lugar sem paredes e sem intimidade, sem privacidade, sem banheiro, colchões atirados no chão, as coisas que ficaram, as únicas coisas adquiridas ao longo de uma existência sem um canto para encostar os filhos. Os filhos, contar os filhos, chamá-los um a um, pedir-lhe por amor aos céus que derrubam um dilúvio que não enfrentassem aqueles policiais, para que viessem, não adianta, eles são menos numerosos, mas são armados e táticos. Água, gás pimenta. Gente de gravata e gente de uniforme de guerra.
Tudo isso, nas primeiras horas da manhã.
Uma ordem de despejo. Uma ordem judicial parecia ser simples. Aquele local, anos atrás, muitos anos atrás, serviu de fábrica de alguma coisa e pertencia ao espólio de um grande trambiqueiro pátrio. Aquele local precisava ser devolvido ao monte, salvo da presença humana de qualquer miserável. Os homens, mulheres, idosos, crianças e seus cães e suas tralhas haveriam de ser postos a correr, garantindo-se a supremacia e o império da Lei. O cumprimento da decisão judicial transformou uma comunidade em uma praça de guerra e transformou contribuintes – as pessoas se esqueceram que aqueles miseráveis são altamente tributados – em inimigos a serem abatidos, acuados, jogados dali para fora.
A forma que se elegeu para cumprir uma ordem judicial remonta ao velho liberalismo clássico da primeira metade do Séc. XX, revivendo de forma anacrônica e trágica o mero cumpridor da lei. No Facebook, o arguto Márcio Sotello Felipe espetou sua lança no lugar exato:
O Direito mudou. Juízes e operadores do Direito ainda raciocinam de acordo com o positivismo da primeira metade do século XX. Muitos, nessa linha, seriam capazes de aplicar cegamente, por exemplo, as Leis de Nuremberg, promulgadas pelos nazistas em 1935, que puniam casamentos de “arianos” com judeus ou mesmo relacões sexuais. Após 1948 iniciou-se uma reviravolta no Direito. Hoje entendemos que regras ou normas positivas SOMENTE VALEM QUANDO CONFIRMADAS POR PRINCÍPIOS OU QUANDO NÃO CONTRARIEM PRINCÍPIOS. Esses princípios são regidos pela ideia de dignidade humana. Isto tem graves implicações. O direito de propriedade não pode violar o princípio de uma vida digna, o direito de ter um teto e o direito de as pessoas abrigarem sob um teto seus filhos e seus idosos. Toda vez que um conflito desse tipo se estabelece, prevalece a dignidade humana. Se a juíza de São José dos Campos tivesse essa sensibilidade e esse aprimoramento técnico, nada do que aconteceu no Pinheirinho neste domingo negro teria acontecido. Por fim uma nota. Estava lá no ato da Paulista e ouvi o relato do senador Suplicy. O presidente do Tribunal de Justiça de SP participou de tudo. O mesmo tribunal que libera milhões de reais para seus desembargadores resolverem dívidas pessoais, omite-se vergonhosamente e não impede a destruição da moradia de 9 mil pessoas, carentes de tudo. Tudo tem limite. Paciência se esgota. Um dia o pau de aroeira vai doer no lombo de quem mandou dar.
Esqueceu-se por completo da função social da propriedade. Ou melhor, não se esqueceu, por uma razão que nos parece evidente e preconceituosa, não se cuidou de estender-se aos moradores do lugar desocupado o direito à dignidade humana, malgrado corressem tratativas de desocupação, para a qual não havia pressa alguma, urgência alguma, nada havia ali que determinasse uma pressa que não teve até o momento da brutal execução da ordem.
Nem se diga que agiu-se em estrito cumprimento do dever legal. O dever legal da Polícia Militar era o de garantir a integridade corporal do oficial de justiça, que deveria intimar um a um dos invasores a sair, nominalmente. Não se pode dar uma ordem geral de desocupação, não se pode de derrubar portas e arrancar à força milhares de pessoas de dentro de seus casebres, equivalendo a desocupar uma pequena cidade, a fazer um bota-fora de pessoas cujas condições de saúde são as mais diversas. Por certo, havia pessoas convalescendo e necessitando de repouso absoluto e não apenas traficantes, havia pessoas com limitações motoras, havia uma população. Não existe dever jurídico algum que imponha a seu titular o dever jurídico de expulsar milhares de pessoas fossem elas ratos de esgoto.
Foi um desastre humanista, mas um sucesso a missão, que, ao final, expulsou dali aquela gente inconveniente.
O mínimo do apreço constitucional teria feito recuar a mão dos magistrados que concederam a ordem notadamente do presidente do Egrégio Tribunal de Justiça de são Paulo, aprisionado numa época ainda pré-republicana, ainda recluso numa época imperial. Um juiz alienado historicamente está fadado a errar.
Abusos policiais aconteceram aos montes, mas não haverá ainda independência para processar, julgar e eventualmente condenar quem ordenou, quem executou a barbárie; no Estado Democrático de Direito não existe um despejo militarizado de cinco/seis mil pessoas que vivem num local abandonado pelo poder público e objeto de uma ação arrastada e lenta. Não existe em um Estado de Direito policiais arrancarem pelos braços e cabelos pessoas desarmadas e indefesas, jogando-as num abrigo público, que nada mais é que a antessala da rua.
A ordem de despejo seria encaminhada num processo democrático de desocupação, que, caiamos das nuvens, estava em andamento. Algumas semanas mais, as coisas se resolveriam. Não era preciso que o Tribunal de Justiça protagonizasse nova cena degradante. Mais que juridicidade, além na medíocre legalidade da decisão, faltou a seu subscritor algo que nos torna mais fácil e agradável a vida: compaixão.


Autor: Roberto Tardelli.

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